Um caso de Polícia
Adaptação de Tom LoFaro
Amanhece no café Mayfair. O
brilho âmbar dos postes misturado com o violentos flash vermelhos e azuis das
viaturas da polícia começam a desaparecer com o brilho alaranjado do sol que
nasce.
A detective Catarina sai do café com um pequeno copo de
plástico com café fumegante numa mão e um resumo dos indícios que recolheu no
seu bloco na outra.
Encosta-se ao farol do seu Range Rover e começa a avaliar as
provas.
Às 5h30m da manhã o corpo sem vida do Presidente da Junta,
arquitecto Crispim, foi encontrado na câmara frigorífica do café, na cave.
Cerca das 6h o médico legista determinou que a temperatura
central do corpo da vítima era de 29,4ºC.
Trinta minutos mais tarde, nova avaliação dessa temperatura
revelou 28,9ºC enquanto o termostato dentro da câmara frigorífica marcava 10ºC.
Catarina sabe que a lei do arrefecimento de Newton impõe que
a taxa de arrefecimento de um corpo é proporcional à diferença entre a
temperatura T do corpo no instante t e a temperatura média ambiente Tm e rapidamente garatuja no
seu bloco entre alguns pingos de café a equação
$\frac{dT}{dt}=k\,(T-{{T}_{m}}),\,\,\,\,\,\,t>0$
onde k é uma
constante de proporcionalidade e t é
medido em horas.
Para simplificar as “coisas” e como Catarina quer investigar
o “passado” usando valores positivos de t
, decide fazer corresponder ${{t}_{0}}$ com as 6h da manhã e assim, por exemplo
t=4 é 2h.
Depois de um golo rápido no café que esfriava rapidamente e
de alguns rabiscos no bloco de notas, Catarina percebe que, com esta convenção,
a constante de proporcionalidade k
deve ser positiva e anota na margem para si mesma que 6h30mn são então $t=-\frac{1}{2}$ .
Entretanto o amanhecer ainda fresco abre caminho para uma
manhã quente de Verão e Catarina começa a sentir o suor a humedecer-lhe as
costas enquanto pergunta a si própria:
- E se o corpo foi
transferido para o frigorífico com a finalidade quer de o ocultar quer de
alterar as condições de temperatura que poderão ser úteis à investigação? Como
é que esta hipótese pode alterar o meu modelo?
Atira o resto frio de café para uma papeleira próxima e volta
a entrar no café. Junto à caixa manchada de Ketchup um termómetro indica 21ºC.
A menina da caixa preocupada com aquela polícia que olha
atentamente para a parede pergunta:
- Posso ajudar?
- Sim pode – responde
a detective como que saindo de um sono letárgico – A climatização do café mantém-se ligada toda à noite?
- Sim, nunca é desligada, mantem praticamente constante a temperatura 24 horas por dia.
- Obrigado, nem sabe
como isso me ajuda – responde a polícia e com os olhos postos no termómetro
a pergunta que lhe surge no espírito é “Então
quando é que o corpo terá sido movido para o frigorífico?”
Deixa para mais tarde pensar nesse assunto e anota:
h = nº de horas que o corpo esteve no frigorífico antes
das 6h
por exemplo, se h =
6 o corpo foi movido à meia noite.
Enquanto observa a azáfama dos detectives no café, Catarina
percebe que para construir um modelo da variação da temperatura ambiente a que
o cadáver esteve submetido tem de recorrer á função “degrau unitário” $u(t)$ e rabisca
Agora já com a blusa manchada de suor arranca no seu Range
Rover com destino ao Pau de Canela
para um pequeno almoço de mais café e ovos estrelados com bacon.
O ar condicionado do estabelecimento conspira com a humidade
do seu suor para lhe provocar um arrepio que a lembra da tragédia da madrugada.
Enquanto espera o pequeno almoço volta ao seu bloco de notas
e revê os seus cálculos. “Bendita rede
wireless, a temperatura normal de um ser humano vivo é de aproximadamente 37ºC,
e até posso calcular os logaritmos que preciso” pensa ela. “Bem me dizia o velho professor de análise
que um dia ia usar estas coisas diferenciais”.
Pouco depois, enquanto come os seus ovos vai cogitando - “no modelo em que o corpo é transportado para
o frigorífico não tenho dados suficientes para determinar k, mas se usar
o mesmo valor do modelo anterior não devo ficar longe da resposta.”
Entretém-se durante alguns minutos a fazer contas e de
seguida elabora uma tabela que relaciona o tempo de arrefecimento $h$ com a
hora da morte.
Empurra então para longe o prato vazio e telefona à sua
colega Ana que ficara encarregue dos primeiros contactos com os funcionários do
Mayfair:
- Olá Ana, já se
conhece algum suspeito do caso Mayfair desta manhã?
- Sim – responde a
colega – Há três suspeitos. O primeiro é
a ex-mulher da vítima, Yulia, uma ucraniana, dançarina no Casino. Segundo
várias testemunhas foi vista no Mayfair entre as 17 e as 18h aos gritos com a
vítima.
- E quando saiu ela?
- Uma das testemunhas
afirmou que ela saiu apressada pouco depois das 6h. O outro suspeito é um
jogador conhecido no Casino, Alex Costa. Cerca das 22h de ontem teve uma
conversa em surdina com a vítima, ninguém ouviu a conversa mas pelos gestos
percebia-se que o Sr Costa estava bastante aborrecido com o presidente da junta.
- E alguém o viu sair?
- Sim, saiu de mansinho
pelas 23h. O terceiro suspeito é o cozinheiro do Mayfair.
- O cozinheiro? –
espantou-se Catarina.
- Exactamente, o
cozinheiro. Chamam-lhe João Pequeno. A rapariga que estava na caixa ouviu o arquitecto
e o João Pequeno em grande discussão sobre a maneira correcta de apresentar uns
escalopes de vitela. Diz ela que o cozinheiro ofereceu a si próprio uma pausa
incomum e bastante longa pelas 22h30m. Saiu furioso quando o Mayfair fechou às
2h. Parece que foi por esse mesmo motivo que a cozinha estava uma grande
confusão hoje de manhã.
Um sorriso apareceu na face de Catarina que retorquiu:
- Bom trabalho Ana, acho
que já sei quem devo chamar para o interrogatório.
_______________________________________________________________________
Qual foi a estimativa da Catarina para a hora da morte do
arquitecto considerando que o corpo não foi transportado do exterior para o
frigorífico?
Qual foi a hora da morte estimada pela Catarina para o caso
do corpo ter sido transportado para o frigorífico algum tempo depois de morrer?
Afinal quem vai a
Catarina chamar para interrogatório?
SOLUÇÃO
Tentemos seguir passo a passo o que a Catarina fez.
Primeiro temos a seguinte correspondência
Hora do dia
|
…
|
7h
|
6h
|
5h
|
4h
|
3h
|
2h
|
1h
|
0h
|
23h
|
22h
|
21h
|
…
|
t
|
…
|
-1
|
0
|
1
|
2
|
3
|
4
|
5
|
6
|
7
|
8
|
9
|
…
|
1º Se o corpo não
foi movido
Nesse caso a temperatura ${{T}_{m}}=10{}^\text{o}\,F$ é uma
constante e a equação diferencial fica
$\frac{dT}{dt}=k\,(T-{{T}_{m}}),\,\,\,\,\,\,t>0$
${T}'-kT=-10k$
que é uma equação linear de primeira ordem com factor
integrante
$\lambda
(t)={{e}^{-k\int{dt}}}={{e}^{-kt}}$
e solução
$T\,{{e}^{-kt}}=\int{-10k\,{{e}^{-kt}}dt=10{{e}^{-kt}}+{{C}_{1}},\,\,\,\,\,\,\,\,{{C}_{1}}\in
\mathbb{R}}$
$T(t)=10+{{C}_{1}}{{e}^{kt}}$
Como às 6h ( $t=0$ ) a temperatura do corpo era 29,4ºC temos
$29,4=10+{{C}_{1}}{{e}^{k\cdot
0}}\,\,\,\,\,\,\,\,\,\,\Rightarrow \,\,\,\,\,\,{{C}_{1}}=19,4$
e
$T(t)=10+19,4\,{{e}^{kt}}$
Por outro lado, às 6h 30m ( $t=-1/2$ ) a temperatura do corpo
era de 28,9ºC, portanto
$28,9=10+19,4\,{{e}^{-k/2}}\,\,\,\,\,\,\,\,\,\Rightarrow
\,\,\,\,\,\,\,{{e}^{-k/2}}=\frac{18,9}{19,4}$
$\,\,\,\,k=-2\ln \frac{18,9}{19,4}\approx 0,05$
então
$T(t)=10+19,4\,{{e}^{0,05\,\,t}}$
e portanto o corpo começou a arrefecer quando t é tal que $T(t)=37{}^\text{o}C$
$37=10+19,4\,{{e}^{0,12\,\,t}}$
${{e}^{0,05\,\,t}}=\frac{27}{19,4}\,\,\,\,\,\,\,\,\Rightarrow
\,\,\,\,\,\,\,\frac{1}{20}\,t=\ln \frac{27}{19,4}\,\,\,\,\,\,\,\,\Rightarrow
\,\,\,\,\,\,t\approx 6,61$
ou seja, a hora da morte teria sido
cerca das 23h 37 m.
2º
Se o corpo foi transportado para o frigorífico depois de morto
A equação diferencial passa a ser
$\frac{dT}{dt}=k\,(T-{{T}_{m}}(t))$ com
${{T}_{m}}(t)=10+21\,u(t-h)$
isto é
$\frac{dT}{dt}=k\,\left[
T-10-21\,u(t-h) \right],\,\,\,\,\,\,\,\,\,\,k=0,12$
onde a função degrau unitário é $u(t-h)=0\,\,\,\,\,se\,\,\,\,\,t<h$
$u(t-h)=1\,\,\,\,\,se\,\,\,\,\,t>h$
Temos então dois períodos, um depois do corpo ter sido movido
para o frigorífico, outro antes de ser movido para o frigorífico.
A) Depois de ser movido para o frigorífico
Neste período é ${{T}_{m}}=10{}^\text{o}C$ e a equação
diferencial é idêntica à do caso anterior
${{{T}'}_{1}}-k{{T}_{1}}=-10k$
com solução geral
${{T}_{1}}(t)=10+{{C}_{1}}{{e}^{kt}}=10+19,4\,{{e}^{0,05\,t}}$
Seja ${{T}_{h}}$ a temperatura do corpo no instante $t=h$
(instante em que o corpo foi movido) temos então
${{T}_{h}}=10+19,4\,{{e}^{0,05\,h}}$
B) Antes de ser movido
para o frigorífico
Neste período é
${{T}_{m}}=21{}^\text{o}C$ portanto a equação diferencial é
${{{T}'}_{2}}-k{{T}_{2}}=-21k$
que admite também factor integrante ${{e}^{-k\,t}}$ e tem solução
${{T}_{2}}(t)=21+{{C}_{2}}\,{{e}^{k\,t}}=21+{{C}_{2}}\,{{e}^{0,05\,t}}$
Como, se $t=h$
a temperatura do corpo é ${{T}_{h}}=10+19,4\,{{e}^{0,12\,h}}$
fica
$10+19,4\,{{e}^{0,05\,h}}=21+{{C}_{2}}\,{{e}^{0,05\,h}}$
$19,4\,{{e}^{0,05\,h}}-{{C}_{2}}\,{{e}^{0,05\,h}}=11$
${{C}_{2}}=19,4-11\,{{e}^{-0,05\,h}}\,$
e portanto
${{T}_{2}}(t)=21+\left(
19,4-11\,{{e}^{-0,05\,h}}\, \right)\,{{e}^{0,05\,t}}$
Na hora da
morte $T=37{}^\text{o}C$ então, se for ${{t}_{m}}$
o instante em que o arquitecto morreu
$37=21+\left( 19,4-11\,{{e}^{-0,05\,h}}\,
\right)\,{{e}^{0,05\,{{t}_{m}}}}$
$16=\left(
19,4-11\,{{e}^{-0,05\,h}}\, \right)\,{{e}^{0,05\,{{t}_{m}}}}$
$\frac{16}{19,4-11\,{{e}^{-0,05\,h}}}\,={{e}^{0,05\,{{t}_{m}}}}$
${{t}_{m}}=-20\ln
\frac{19,4-11\,{{e}^{-0,05\,h}}}{16}$
Com estes dados podemos elaborar a seguinte tabela
$h$
|
${{t}_{m}}$
|
Hora a que o corpo foi removido
|
Hora da morte
|
|
12
|
3.602
|
18h
|
2h
|
24m
|
11
|
4.071
|
19h
|
1h
|
56m
|
10
|
4.575
|
20h
|
1h
|
25m
|
9
|
5.120
|
21h
|
0h
|
53m
|
8
|
5.710
|
22h
|
0h
|
17m
|
7
|
6.348
|
23h
|
23h
|
39m
|
6
|
7.043
|
0h
|
22h
|
57m
|
5
|
7.799
|
1h
|
22h
|
12m
|
4
|
8.627
|
2h
|
21h
|
22m
|
3
|
9.536
|
3h
|
20h
|
28m
|
2
|
10.538
|
4h
|
19h
|
28m
|
1
|
11.649
|
5h
|
18h
|
21m
|
0
|
12.887
|
6h
|
17h
|
07m
|
É assumido que o corpo foi transportado para a câmara
frigorífica depois de ter sido morto. Sendo assim, as 6 primeiras linhas não
podem ser consideradas. No que diz rito às restantes linhas podemos
elaborar o seguinte cronograma:
As estrelas
vermelhas correspondem à hora calculada da transferência do corpo para a camara
frigorífica, as estrelas azuis no mesmo nível correspondem à hora da morte.
Nem o Sr Costa nem a Sra Yulia ao que se sabe, estavam presentes no Mayfair simultaneamente à hora da morte e à hora da transferência.
Nem o Sr Costa nem a Sra Yulia ao que se sabe, estavam presentes no Mayfair simultaneamente à hora da morte e à hora da transferência.
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